segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Morte: A dor do Cuidador

1. INTRODUÇÃO

Nos últimos anos vem aumentando a preocupação de profissionais brasileiros de gerontologia para com o bem-estar físico e psicológico de familiares que cuidam de idosos fragilizados e de alta dependência. Cuidar de um idoso fragilizado pode ser considerado um papel normativo ou esperado na vida de um cuidador, na medida em que ele o exerce em virtude de expectativas sociais baseadas em relações de parentesco, de gênero e idade, expectativas essas típicas de seu grupo social1.
Assim como o cuidador familiar, o profissional de saúde, enquanto cuidador, é um profissional também está sob constante tensão. Seu foco de atenção objeto de trabalho é uma pessoa doente, alguém atingido na integridade física, psíquica e social; alguém que expressa sofrimento, que corre, muita vezes, risco de morte e toda mobilização que isso provoca no próprio doente, nos amigos e familiares que o cerca, exigindo do profissional resultados quantas vezes superiores à possibilidade humana de alcançá-los2.
A morte vista como o desconhecido traz à tona a sensação do medo, o mistério, o não familiar, que, é também associada a um certo fascínio, de que o desconhecido oferece a possibilidade de descobrir algo que não se conhece e que pode ser mais instigante que a própria existência3. A perda de uma pessoa amada é uma das experiências mais intensamente dolorosa que o ser humano pode sofrer. É penosa não só para quem experiencia, como também para quem a observa, ainda pelo fato de sermos tão impotentes para ajudar4. O elemento finitude revela o caráter de finito, ou seja, que tudo está acabado. Essa idéia, pode vir acompanhada de tristeza e revolta, considerando que interrompe a vida, podendo-se pensar na morte fora de hora. Pode também ser encarada com indiferença, fatalidade, após ter-se cumprido uma missão; poderá ser chamada de morte na hora certa5.
A morte traz consigo, sentimentos importantes como a indiferença – mecanismo de defesa; a tristeza – normal pelo laço de afeto construído no relacionamento cuidador-doente; impotência – que vem da fantasia de que conhecimento resolve tudo; medo de expressar sentimentos - resultado da construção do mito de que o cuidador deva ser impassível diante da situação de morte6.
Mas a morte traz a dor, que é definida pelo comitê de taxonomia da “International Association for the Study of Pain" – I.A.S.P. (Associação Internacional para o Estudo da Dor), como uma experiência sensorial e emocional desagradável associada a lesões teciduais reais ou potenciais. A maneira que cada ser humano sente, reage e memoriza a dor é única e pessoal porque está ligada diretamente à estrutura do seu mundo interno7.
A “Dor Total” inclui o sofrimento físico, psíquico, social, espiritual, mental, cultural e financeiro do paciente, abrangendo também o sofrimento dos familiares, da equipe médico–hospitalar e cuidadores8.
Prover cuidados pode causar estresse fisiológico e emocional. Pode causar sofrimento, deterioração e envelhecimento do organismo. Pode produzir sintomas, precipitar doenças que estavam em estado latente ou agravar doenças existentes, diretamente influenciadas pelo estado de ansiedade, depressão. Os diversos distúrbios do funcionamento mental estão também intimamente relacionados com o provimento de cuidados9.

MORTE

No imaginário popular a morte é representada como o juiz cruel que não faz distinção entre pessoas, classes, raças, sexos ou religiões. Ela é o ser perfeitamente justo que vem atingir a todos, sem levar em consideração nenhum de seus privilégios. A morte desempenha seu papel sem considerar mérito ou demérito, por meio de suas cartas, enviadas nominalmente, com destinatário certo. Uma única cobrança e todos são igualados10. O vivente quando morre é porque “[...] cumpriu sua sentença e encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo, morre”11. Desse modo, a morte é o ideal popular da justiça que trata a todos de forma igualitária, segundo o princípio de “dar a cada qual a mesma coisa”12.A pergunta “o que é a morte?” tem múltiplas respostas e nenhuma delas conclusiva, pois a questão transcende os aspectos naturais ou materialistas e, até biologicamente, é difícil uma resposta unânime13. “É a cessação total ou permanente de todas as funções ou ações vitais de um organismo”14. “A morte é o fim da vida. Mas fim entendido como meta alcançada, plenitude almejada, lugar do verdadeiro nascimento. A união interrompida pelo desenlace não faz mais que preludiar uma comunhão mais íntima e mais total”15.
Antigamente, a morte era tratada com mais naturalidade. O doente permanecia em casa, era cercado pela família e recebia atenção de todos. Dava as recomendações finais, manifestava seus últimos desejos, pedia perdão e se despedia. O falecido ficava exposto sobre uma mesa e, durante dois ou três dias, seus parentes e amigos, com vestimentas de luto, desfilavam diante dele para o último adeus15. Entretanto, na sociedade moderna industrial, há um afastamento da morte, o que é refletido na modificação das atitudes perante ela. Diante da morte, o imperativo é o silêncio. A grande cena da morte foi transformada em um ato frio, onde ninguém tem direito de se emocionar, senão às escondidas, para não perturbar os sobreviventes. Há uma tendência à neutralização dos ritos fúnebres e à ocultação de tudo o que diz respeito à morte. O velório acontece longe da casa do falecido e seu corpo é preparado de forma a perder suas características de defunto por meio da toalete funerária. O funeral é rápido, e, às vezes, alguém pronuncia algumas palavras em homenagem ao morto e tudo se encerra16.
A morte não se refere apenas ao envelhecimento contínuo, à transitoriedade, ao declínio inexorável de todas as forças vivas. Ela evoca também um outro mundo, aterrador, “aquele da confusão, do caos, do ininteligível, onde não existe mais nada nem ninguém”17.Apesar de a morte subsistir desde os primórdios da humanidade, em que a vida e a morte co-existem, o processo de morte e morrer tem sido motivo de aflição e agonia, já que mostra o quão suscetível e tênue é o estar vivo, ou seja, ser mortal18.
O enfrentamento da morte é difícil e angustiante para quem a vivencia, podendo ser mais ainda para quem a observa, porque a morte provoca rupturas profundas entre quem morreu e o outro que continua vivendo. Isso requer ajustamentos no modo de entender, de perceber e de viver no mundo19.

O CUIDADOR

O ato de cuidar inclui duas significações básicas, inteiramente ligadas entre si. A primeira é a atitude de desvelo, de solicitude e de atenção para com o outro. A segunda, de preocupação e de inquietação, porque a pessoa que tem cuidado se sente envolvida e afetivamente ligada à outra 20.
É sabido que o processo de cuidar de pessoas, inevitavelmente, proporciona sofrimentos, sentimentos de alegria, tristezas, impotência, perdas, dor, rejeições e angústias naqueles que são responsáveis de cuidar, principalmente, quando aqueles a serem cuidados, encontram-se em condição de fragilidade21.
Exercer o papel de cuidador é assumir uma grande responsabilidade consigo mesmo e com o outro. Não é fácil ser cuidador de um indivíduo, cuja morte é iminente, sendo difícil proporcionar uma assistência digna, Atendê-lo integralmente e aceitar que o limite desse cuidado possa ser traçado por ele. Diante disso, torna-se necessário um equilíbrio das reações e emoções diante do doente e seus familiares. Apesar de o sofrimento existir, o que se busca é assumir uma atitude ética e respeitosa ao lidar com os próprios sentimentos diante do sofrimento causado pela morte22.As pessoas nem sempre cuidam por vocação ou carinho do seu familiar. E isto poderá ocasionar desgosto na realização dos cuidados. Este tipo de família com certeza irá recorrer aos centros de apoio para pessoas com doença crônica ou preferem que o paciente passe a maior parte do tempo internado23.
Muitos dos cuidadores desabafam em relação aos seus sentimentos: a falta de tempo para cuidarem de si e dos demais membros da família, como os filhos, visto que a entrega maior se dá por parte das mulheres. É possível observar a vulnerabilidade dos cuidadores por diversos fatores, associados ao surgimento de manifestações psíquicas: visão negativa do cuidador sobre a doença ou sobre o impacto que esta doença tem na sua vida, ausência de uma rede de suporte, relação difícil com o paciente. Para o cuidador não se trata apenas de sobrecarga das tarefas, mais sim uma ameaça a sua saúde23.
A Organização Mundial da Saúde considera o atendimento às necessidades dos cuidadores um dos principais objetivos dos cuidados paliativos23.
Outro problema visível é a falta de compreensão dos demais familiares, no caso do cuidador familiar, pois a sobrecarga acaba sendo maior para o cuidador principal, apontado pelos demais membros da família24.
É comum que nas famílias um membro seja eleito como o “cuidador principal”, ou seja, uma pessoa que assume os cuidados permanentemente ou a maior parte do tempo sem ser remunerada para isto. O parentesco mais esperado entre os cuidadores principais é o da filha, independentemente do sexo do paciente, seguido de esposa25.
A escolha do cuidador não costuma ser ao acaso e a opção pelos cuidados nem sempre é do cuidador, mas, muitas vezes, expressão de um desejo do paciente, ou falta de outra opção; ao se sentir responsável, assume este cuidado, mesmo não se reconhecendo como um cuidador26.A possibilidade de cuidar remete o profissional à relação mais próxima possível com o paciente de quem cuida, de maneira que ele possa ser percebido em sua dimensão humana27. Sob esse prisma, a morte não é tão somente o aniquilamento de um estado biológico, mas é também a finitude de um ser em interação com um outro27. Esse entendimento do outro faz parte da mais importante atividade mental, porque possibilita o desenvolvimento do self e a sua aproximação com as situações da realidade cotidiana28.
Embora a temática morte, morrer, sofrimento e perda sempre desencadeie, por si só, os mais variados sentimentos, geralmente de desalento, a depender do sofrimento a que o ser humano está exposto, é possível que o cuidador, profissional ou não, não lhe deseje a morte, mas aceite a situação de morte como alívio para o que parece ser cruel e doloroso19.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo que engloba a morte e o morrer é confrontada pelos cuidadores, profissionais ou não, em seu trabalho efetivo de assistir as pessoas. Este trabalho de revisão evidenciou que sentimentos de luto como tristeza, angústia, ansiedade emergem no cotidiano e refletem uma imensa frustração e culpa em quem cuidou do outro diante da morte e do morrer. E ainda, que há a necessidade de se entender que a morte não é um desafio à vida, mas parte integrante da mesma. “como tudo o que é humano, a vida é também cansaço que anseia pelo sono”29.
Referências Bibliográficas

1 GONÇALVES, L. O. Cuidadores primários familiares dos idosos atendidos na Clínica Escola de fisioterapia da universidade do vale do itajaí -Univali. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina – Florianópolis- SC 2002.
2CAMPOS, E. P. Equipe de saúde: cuidadores sob tensão. EPSTEMO-SOMÁTICA [Belo Horizonte]. V.III. n.02. set/dez 2006. p. 195-222.
3 KOVÁCS, M. J. Educação para a morte: desafio na formação de profissionais da saúde e educação. São Paulo: Casa do Psicólogo;2003.
4 BOWLBY, J. Perda: tristeza e depressão. São Paulo: Martins Fontes; 1985.
5 KOVÁCS, M. J. Pensando a morte e a formação de profissionais de saúde. In: Cassorla RMS, coordenador. Da morte: estudos brasileiros.
2ª ed. Campinas: Papirus; 1998. p. 79-103.
6CASSORLA, R. M. S. Reflexões sobre a psicanálise e a morte. In: KOVÁCS MJ, MORATO HTP, ROTHSCHILD D, FREITAS LV, CALAZANS RA, CASSORLA RMS, et al. Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2002. p. 19-112.
7MERSKEY, H.; ALBE – FESSARD, D.G.; BONICA, J.J.; CARMON, A.; DUBNER, R.; KERR, F.W.L.; LINDBLOM, V.; MUMFORD, J.M.; NATHAN, P.W.; NOORDENBOS, W.; PAGNI, C.A.; RENAER, M.J.; STERNBACH, R.A.; SUNDERLAND, S. – Pain terms: a list with definitions and notes on usage. Recommended by the IASP subcommittee on Taxonamy. In: Pain, 6: 249 - 52, 1979.
8SAUNDERS, C. – Hospice and palliative care. An interdisciplinary approach. London. Edward Arnold. 1991.
9RIO, R PIRES do. O fascínio do stress. Vencendo desafios num mundo em transformação. Rio de Janeiro: Editora Dunya, 3. ed.,1998.
10 SARAMAGO, J. As intermitências da morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. SBP. Revista Brasileira de Pediatria. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Pediatria, mar, 2005.
11SUASSUNA, A. Auto da Compadecida. 10. ed. São Paulo: Agir Editora, 1973.
12 PERELMAN, C. Ética e Direito. Trad. de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. Martins Fontes: São Paulo, 1996.
13CHIAVENATO, J. J. A morte: uma abordagem sócio cultural.. 2a ed. São Paulo: Moderna; 1998. 126p.
14VIEIRA, T. R. Bioética e direito. São Paulo: Jurídica Brasileira; 1999. 80p.
15BOFF, L. Vida para além da morte. 2a ed. Petrópolis: Vozes; 2002. 208p.
16ARIÉS, P. Sobre a história da morte no ocidente desde a idade média. 2a ed. Lisboa: Teorema; 1989. 190p.
17SCHOPENHAUER A. Die welt als wille und vorstellung I (O mundo como vontade e representação I). Livro I. In: Sämtliche werke. Frankfurt/M: Suhrkamp: Ed. Wolfgang Frhr. Von Loehneysen; 1986. Vol. I.
18 BELLATO, R.; CARVALHO, E. C. O jogo existencial e a ritualização da morte. Rev Latino-am Enfermagem. 2005; (13)1:99-104.
19CARVALHO, L. S.; OLIVEIRA, M. A. S. da; PORTELA, S. C.; SILVA, C. A. da; OLIVEIRA, A. C. P. de; CAMARGO, C. L. de. A morte e o morrer no cotidiano de estudantes de enfermagem. R Enferm UERJ, Rio de Janeiro, 2006 out/dez; 14(4):551-7. • p.551 -7.
20 BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
21AMORIM, L. V. Importância de cuidar dos cuidadores. Disponível em: www.unama.br. Acesso em: 27/09/2008.
22ARAÚJO, P. V. R., VIEIRA, M. J. A questão da morte e do morrer. Rev Bras Enf 2004 maio/jun.; 57 (3): 361-3.
23FISCHER, E. S., SILVA, M. J. P. Reações emocionais da enfermeira no atendimento ao paciente fora de possibilidades terapêuticas. Nursing (São Paulo) 2003 nov.; .66 (6) : 25-30.
24KALINKE, L. P.; DIAS, A. R. O. de; COSTA, J. F. da; TESTONI, R. I.; BETTEGA, R. As dificuldades apresentadas por cuidadores familiares de pacientes oncológicos em cuidados domiciliares: uma visão da enfermagem. Disponível em: www.utp.br/proppe Acesso em: 26/092008.
25OMS- Organização mundial da saúde. Câncer. Disponível em http://www.oms.br Acesso em 26/09/2008.
26WANDERBROOCKE, A. C. M. S. Perfil do cuidador do paciente idoso com câncer. Revista Psico, Port Alegre, v. 33, n. 2, p. 401-412, jul./dez. 2002.
27 PALÚ, L. A.; LABRONICI, L. M.; ALBINI, L. A morte no cotidiano dos profissionais de enfermagem de uma unidade de terapia intensiva. Rev Cogitare Enferm. 2004; (9)1:56-79.
28CHARON, J. M. Simbolic interactionism: an introduction, an (UK): Cliffs Prentice-hall; 1985.
29 ALVES, R. Tempo de morrer. In: Alves R. O retorno e terno: crônicas. 7a ed. Campinas: Papirus; 1996. p.113.

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